Abc
Versos talhados nas vértebras
Depois de Vênus
Por que a vida para
quando não se marca
à ponta seca do compasso
o perímetro do coração?
É porque na noite limpa,
entre todas as noites sujas,
a única pureza existe
em quem no olhar insiste
a amar o que não fincou.
Mas ao limite riscado
sem delimitado centro
faz-se a cerca um momento
de dimensões livres à imaginação.
Amar sem proporções é tecer
no duelar de olhares
galáxias de criação.
Refugiável
extraviados aos estreitos
limbos do mundo.
Tudo imperfeito,
estragados lares leitos
debruçados na guerra
dum reizinho
e seus abusos.
Inventário
Quem herdará o amanhã
não é o filho do proletário.
Mas quem herdará o amanhã?
O idiota que joga carro no espaço.
Quem herdará o amanhã
não é um bilhão de desempregados.
O que herdará amanhã?
Cemitérios no descampado,
lotado de ossos sintéticos,
carbonos progressos irrespiráveis,
regressos, alimentos recicláveis,
antepastos em adubos rumináveis,
pequenos ciclos d’água
a refrescar ardência das veias
riscadas ao bombear areias
de glóbulos azuis, alvas realezas,
mistérios vazios das soberbas decadências.
Com quem herdará o amanhã?
Trator lenhador, maquinário que for,
gente… só se o povo parar
e pilhar para si o inventário
do idiota que joga carro no espaço.
Pêndulo
A robotização dos sentidos,
o eterno hoje em amanhãs vividos,
os sentimentos todos regidos.
Fazer cativo do prazer.
É o dom de voar,
é a maldição da vida por segundo,
é o legado da felicidade.
Prazer cativo do fazer.
Bater o cartão na entrada,
bater o cartão na saída.
Fazer cativo do prazer.
É veneno no chá do carrasco,
é bálsamo na pinga da esperança.
Depois da Tempestade
Se tudo é triste, dance ao poente.
Olhar doido na cidade alegre,
olhar são na cidade amarga.
Não se perca, condenado,
antes de provar a culpa
de sonhar contente
e se esquecer
da tristeza
enquanto
sina.
Tarifa
Cercaram
a terceira margem
com pedágio
para as almas.
O barqueiro culpa
a alta demanda
causando avarias
tanto no caminho
mórbidas águas
como na embarcação.
Virou rarefeito
ocupar a partida,
lotando a margem
de quem não pagou
a morte durante
seus vivos dias.
Reflexão Póstuma
só busca encontrar
caminhos de fé.
Desconhece o prazer
de se afirmar
além da maré.
E quem já sabe morrer
não busca encontrar
caminho qualquer.
Sente eterno prazer
por nunca negar
o instante que vier.
Arqueiro
percorro o alvo do meu senso mágico,
pois o tiro exato me apavora.
No seu centro encontro meu retrato.
Instinto flecha o teu corpo ácido,
sangue jorra da veia metáfora.
Não mata a essência da alegria
e do corpo liberta a brasa.
Quando quebro as paredes lógicas
metralho lira no meu senso prático,
pois tiro cego atiça alma.
No meu centro encontro seu retrato.
Quatro vertentes de um beijo ávido:
a mira, a f lecha, o tiro, o alvo.
Vara o corpo de alegrias
e nas feridas dilui sua graça.