Prosa

Prosa indiscreta

Pensar sonhamentos

A experiência vai de encontro aos sonhos tal qual uma agulha em um balão, além do estrondo não sobra muito à realidade. A agulha com toda a sua fineza aguardará o encontro com novos balões no ápice do vigor. Qual é o nome oculto nesta costura sem linha do tempo, entre realidade em desencanto e irrealidade encantada? Esperança… ave do bico espada. A defesa é insuflar os balões não só de sonhos, mas de possibilidades, para que o tempo não murche a solidez firmada nesta festa em sonhamentos.

Pronunciamento à nação

A quem possa interessar, comunico minha renúncia à condição de sequestrador do outrora presidente da república, senhor Jair Messias Bolsonaro, devido à necessidade de preservação da higiene em minhas sinapses. Após o curto período de tempo no qual mantive tal figura em convívio, notei minha incapacidade argumentativa visando a colaboração. Sequestrei-o com um único intuito, que ele lavasse meu banheiro. Peço compreensão: as condições de tal pedido eram apenas o serviço aferido, ao qual todo material para execução fora disponibilizado, incluindo luvas e um uniforme para não danificar sua pele e roupas na atividade. O mesmo vociferou toda a sorte de insultos, demonstrando um sentimento de ultraje. Recorri a toda sorte de chantagens, ameaçando sua família das formas mais vis possíveis a meu linguajar e nada o demoveu de sua postura, informando-me que não chegara à presidência da nação para se rebaixar a tal atividade. Após um curto tempo estendido na tortura de tal convívio não tive mais forças e resolvi devolver tal figura a quem quer que seja. Ficou óbvio. o Jair jamais renunciaria aos seus privilégios democraticamente monárquicos. O resultado de minhas necessidades fisiológicas são menos enjoativos. Por completa repulsa, continua público o que é insalubre ao privado.

 

Pátria Arcaica Brasil

Zeus salve a todos!

Transflorescer

Então, ao insuflar-se de diversas luzes imanadas dos livros, Margarida desabrochou. Não fora seu primeiro desabrochar,  era flor fênix encarnada das cinzas das próprias pétalas. Desabrochou ao crescer, ao não murchar pela violência do coração e nas mãos dos homens, na ressecada vivência do sustento furtando tempo. Seu desabrochar não era só a beleza escancarada no movimento, era cor em resistência ao descaso do meio. Atraiu abelhas desesperadas a difundi-la por toda a parte. Um verdadeiro enxame que portava os ecos das luzes dos livros, e se frustrou pois em lugar algum brotou Margarida como essa. Foi causa desconhecida, e na ciência configurou camuflagem. Só permitiu desabrochar fecundo em semelhanças quando aprendeu a controlar seu movimento, abrindo e fechando suas pétalas páginas conforme notasse de si luz própria, não só dos livros lidos, do Sol que perdoou, das sombras dos homens nas quais não se apagou, das cinzas de suas cores incendiárias. Margarida transcendeu ser florida.

Estrelinha-gente-morta

Seu avô virou estrelinha. Inventa o pai uma lúdica didática sobre a morte ao imaginário da filha. Mas tudo isso de gente morreu? Indagava a menina atenta à astronomia vital que não permitia outro cálculo diferente de muito mais. Estrelas no céu são raros efeitos nas noites urbanas. A falta de resposta paterna gerou rápida conclusão: adultos mentem. Consequentemente deixou de acreditar em Papai Noel, Coelhinho da Páscoa, Fada do Dente, Deus e toda a sorte de imaginários que não fossem seus e somente seus; mas acima da desconfiança das fantasias do mundo vinha a desconfiança nos adultos. Obedecia por memória dos castigos, contudo nem as lições da escola pareciam alguma espécie de verdade. Aprendeu coisas básicas pelo cru da experiência. Fogo queima, tomada dá choque, vidro quebra e corta… às vezes eles dizem verdades. O impossível era saber quando não se tratava de mentiras. Não desconfiou na infância e na adolescência, apenas na maturidade se deu conta que estrelinhas-gente-morta e Papai Noel existem para os adultos controlarem o imaginário das crianças pela moral mais conveniente. Quando foi sua vez de contar a morte ao filho apenas disse: – Ele morreu. E o que acontece com quem morre? Ninguém sabe, só fica no mundo quem vive… eu nunca mais vou ver o vovô? Vai na sua memória, no seu sentimento, em alguma foto ou vídeo. Mamãe, já sei o que acontece com quem morre. O quê? Vira TBT. Neste dia percebeu, a verdade não tem lugar num mundo de ilusões.

Carnuvial

É concreta a terra que não floresce. Motores fúnebres pulsam sem paixão os estrondos de suas galopadas emborrachadas. O cárcere solar zebrou-se das persianas aos armários inconformados, atravessando a cúbica liberdade. Veias entrecortadas e espremidas às margens, via que intimida passagem isolando os passos da gente. O astro regido pelo dedo no botão finge órbita aos pensamentos. Os fios para o esclarecimento não são mais que poleiros para pombas potencialmente suicidas. No batente vasos e caules incipientes, cinzas de amargas poeiras desesperançosas de floresta. Árvores pétreas faíscam, quando não explodem, frutos de utopias. Por dentro os pés dançam centopeia no peito, por fora restam chinelos desencarnados, sapatos embalsamados, meias vontades… essas coisas que isolam os passos da gente. Chaves folgadas despetalam intenções murchas, adubam planície interdita a engenho de plantas brutas. É florida a terra inconcreta.

A ansiedade pelo próximo carnaval revigorava minhas entranhas antes da pandemia, a qual se intensificou pela ampla reiteração midiática. O vírus ainda não ganhara nacionalidade comprovada, mas pelo hábito da reclusão de dois anos repletos de narcóticos controlados, ficar na montanha era mais lógico que habitar a cidade. Perdi, portanto, o carnaval que tanto ambicionara. A fantasia de anjo que comprara ficou pendurada na porta do armário, esperando as ruas e euforias. Seria um carnaval de novidades. A primeira delas é que estaria legalmente sóbrio, tão sóbrio quanto permitisse a psiquiatria. Calculara com precisão os intervalos de descanso com os blocos em que me permitiria alguns passos mal sambados, uns beijos que distribuiria ou ganharia e, porque não, duas ou três latinhas. Se é festa leve e de verão, qual é dessa cartola? O anjo que vestiria não controla meu gosto por certa solenidade. Era mágico, anjo ou palhaço?… a magia viria naquele cruzar de olhos que esquece do corpo. Na terceira vez, ou primeira que se daria conta de ter cruzado olhares outras vezes, cujo primeiro toque fora fruto do caos dançante das massas. Faísca, corpos que se grudariam sem a menor necessidade da ciência dos nomes. Não haveria nomes. Habitaria no diálogo das almas poesia que nenhum mágico enganaria na cartola. Certamente um palhaço? Como queira, meu sonho minha cura. Esqueceria o controle do descanso em tamanho êxtase e, nos últimos afetos da terça já saberia: – Com você eu caso numa quarta-feira de cinzas.

Mexo os ovos fecundando a fome. Tomo da garrafa térmica o glacial café que um dia passei. Já não importavam os sabores, saberes, fundamentos da rotina. Quente e frio, ecos de um dia após outro dia, fato maior que os abortos do instante. Passado, era tudo que fervia.

Dois anos e ainda habita a porta do armário. Um anjo depenado vestiu minha pele. A túnica branca, sádica e purista, escondia a nudez da carne exposta. Ele nada sente e voa, eu nervura aberta e avassaladora. Nas poucas penas que restavam, já encardidas, duelava pavão em frangalhos. Seria tal anjo com meu escalpo urubu de rapina?

Pedi o divórcio na quarta, pois a quinta já é festividade do carnaval que se inicia pela ressaca cuja cura é beber de toda a sexta. Não foi com coragem, o sexo tardou a decisão. Sabia que queria ser livre para todos os prazeres fugazes. Nunca me negara. sete tiros, uns baseados, duas balas e vários tragos de cachaça. Sem nenhuma reclamação quanto a sobriedade ou o entorpecimento. Perfeito era o tédio que me causara. Alguns beijos roubados, muitos negados com bastante revolta. E qual era o prazer? Acordar e nem se lembrar de qualquer intimidade?… tua pele só me veste sem o peito na cabeça turva. O corpo suando o álcool que não evaporava da mente sombria. Depois da abstinência duas mensagens bastam ao consumo das coisas proibidas. Todo contato era excesso que se fazia. Da boca não sai palavra certa de nenhuma marchinha. Qual era mesmo o rosto daquele sorriso? Sem graça! O palhaço veste melhor sua angelical cara. Borrada maquiagem escancarando a farra. Acordo debaixo de uma banca de jornal com o vento a varrer as cinzas da quarta no ultimo retumbar do coração que não mais se bastava. Taquicardia…!…!…! Passado era tudo que não ocorria.

Não posso é viver da fantasia. Disse o cabide aos sonhos transbordados. A pele do corpo, as vestes do anjo, nada mais me servia. Já é o décimo terceiro dia do carnaval pós-pandemia. Fui convidado para a festa do bloquinho da rua de cima. Na rua de baixo os escombros dos hábitos. Tenho muitas comorbidades e algumas doses de alforria. Num voyerismo auditivo salivo o gosto do instante. Pecado, só me lembro de engasgar ou cuspir  ensaios… muitas vontades e algumas doses de prudência. Talvez noive a sorte ou me envolva com a correnteza. A armação das asas seria bom artefato da decadência. Pouco importa, ainda  não sei se vivo da morte ou se morro de vida.

As tais coisas que impedem os passos da gente…

Enigma da Palavra - Ulysses Barros

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