As bibliotecas talvez sejam os primeiros museus. Primeiro, por não se configurarem inicialmente como o constante hábito de leitura, afinal, a maioria dos livros, acumula poeira ao invés de serem lidos. Segundo, as bibliotecas sempre foram demarcadas como espaços de privação, pois o primeiro acesso, o letramento, por muito tempo fora privilégio de pequenos grupos sociais; além disso, tais espaços também eram acessíveis apenas a pequenos grupos. O iletrado não poderia, mesmo para além das restrições educacionais, acessar armazenamentos de escritos. Por último, e fundamental, a preservação de originais também se deu como espólio de guerras surrupiados pelos vencedores. Uma concentração do saber, ou melhor, da possibilidade do saber, acessível apenas como privilégio.
A democratização de certo saber como o letramento das grandes massas, com a criação de bibliotecas públicas, não tornou a leitura e o aprendizado necessariamente democráticos, pelo contrário, tal letramento possui a finalidade do cumprimento de atividades laborais. A partir do momento em que as atividades laborais necessitaram de letramento as letras se tornaram mais acessíveis pela educação. Ler para além do trabalho é luxo pelo qual, as mentes desgastadas no fazer das atividades diárias, nas extenuantes jornadas laborais, pouco dará conta de novos exercícios à mente. Então, os fatores tempo e cansaço são componentes fundamentais de uma sociedade letrada pela funcionalidade. Somado a isso, no cenário brasileiro, a capitalização dos saberes torna o preço dos livros um privilégio que, aqueles que estão limitados ao poder financeiro da sobrevivência, não poderão usufruir. As bibliotecas públicas são voltadas para quem possui tempo de habitá-las. Monumentos da barbárie intelectiva.
As bibliotecas privadas ainda existem e são, na maioria das vezes, privilégios financeiros e ostentações de um saber raramente absorvido. Saber é status e fingir saber em diversos casos funciona como placebo. Livros são decorativos e, muitas vezes, nem sequer folheados. Um livro de charutos afirma o hábito do burguês, um livro de filosofia certo ar de controverso, um livro de poemas cheira a sensibilidade. Quantos livros fechados são necessários para demarcar sua identidade? Quem gosta de livros deveria gostar deles em mundo, não na decoração de uma casa.
Outro problema e de tamanha gravidade é que livros representam, ou sintetizam, o direito à palavra. Basta observar os títulos clássicos, as bibliotecas públicas e privadas, e deduzirá que o direito à palavra fora concedido por muito tempo quase que exclusivamente a homens brancos. O fator do eurocentrismo pesa nesta constatação, mas não é o único. O patriarcado antecede o eurocentrismo. Enquanto os homens da democrática Atenas, com certo poder econômico, poderiam se dedicar à escrita, as mulheres nem sequer eram consideradas cidadãs. Antecedendo até mesmo o ato da escrita, em sua origem mais longínqua, na arte de contar histórias, de partilhar experiências, verá que o controle do que era dito ou narrado, a partir da construção dos gêneros, criou uma categoria de pessoas interditadas quanto ao direito a fala e, posteriormente, à escrita. Se a totalidade dos livros que você leu ou possui demonstrar algo diferente desta constatação, ou a sua leitura é mais inclusiva e voltada à contemporaneidade, ou a aquisição dos exemplares objetivam a representação de uma inclusão intelectiva.
Fato é que livros deveriam existir como diálogo entre o leitor e o que é lido, tão somente. Todas as construções que se voltam a esta finalidade cumprem a vocação literária. Algo incomum, desde a intimidade dos economicamente privilegiados, os leitores cujo tempo destinado à leitura não afeta de forma crucial as garantias básicas da sobrevivência, como nos grandes monumentos, as bibliotecas, que mais representam a inacessibilidade pela falta de tempo das pessoas do que a acessibilidade da leitura. quando tive tempo, habitei com certa frequência a Biblioteca Mário de Andrade e a Biblioteca Florestan Fernandes, e o que via era sempre o mesmo: raras pessoas e uma imensidão de livros fechados. Livros só deveriam permanecer nas bibliotecas para restauração, no resto do tempo a permanência deveria ser aos olhos e mentes dos leitores.
Eu possuo, no tempo desta escrita, uns quinhentos livros, raramente leio mais de um por vez. E você, quanto privilégio acumula nas suas estantes empoeiradas?