E agora, você? Sujeito na pós-modernidade…

O icônico poema José, do Drummond, possui uma das técnicas mais sofisticadas do fazer poético: o desdobramento do eu-lírico. Em outras palavras, o eu se divide sem perder a unidade, criando uma diálogo interno ao poema. As duas vozes são apresentadas logo na primeira estrofe, uma  no decorrer dos primeiros versos e outra cuja identidade se manifesta nas indagações demarcadas pelo pronome ‘você’. Tal desdobrar possui mais uma aspecto: o poema faz perder dimensão entre ‘José’ e ‘você’. Não se trata de uma diálogo plenamente demarcado por duas personagens, como em uma peça de teatro. Nas diversas vezes em que José é referido não é possível determinar se é o mesmo que se opõe ao ‘você’, confrontado na primeira estrofe, ou se o ‘você’ também passa a ser referido pela nominação deste eu-lírico desdobrado. José, de forma simultânea, é e não é o ‘você’, o eu-lírico se provoca e é provocado pela perdição do fim da festa, pela escuridão, pela ausência de tudo que não é o conflito entre a provocação da realidade desoladora e a constatação da própria provocação. A leitura do poema feita pelo poeta, cujos registros fonográficos das declamações demonstram uma completa falta de recurso cênico, de interpretação vocal, no caso de ‘José’ corresponde justamente à indeterminação quanto à posse destas duas vozes do mesmo eu-lírico.

Pensando no José enquanto uma voz desdobrada, surge a pergunta: por que  José se provoca quando à própria perdição? O filósofo Byung-Chul Han, cuja introdução à obra é acessível pelo documentário Sociedade do Cansaço, em sua análise sobre o sujeito pós-moderno, apresenta um caminho para a interpretação. Para determinar o que é a depressão, doença apontada pelo filósofo como pós-moderna, Chul Han, em Topologia da violência aponta que sua causa é a interiorização da violência que antes era direcionada ao outro para eu um ego partido, no qual a parte violentada seria um outro do sujeito violador, ou seja, um confronto interno entre a coação que o sujeito se causa  por explorar a si mesmo e a liberdade. Como a boa literatura transcende seu tempo histórico e, muitas vezes, preconiza o futuro, não seria um erro considerar José, com a ressalva necessária entre literatura e realidade, um sujeito pós-moderno. Mas trata-se de depressão? O fato de José querer os lugares, mas os mesmos não estarem disponíveis (salvo um literalidade inócua), aponta  não a inexistência pela secura do mar, pelo fim da festa, mas sim a impossibilidade de pertencimento aos lugares. José, por mais que queira ser presente, se desencontra com a presença. Ou seja, sua liberdade se encontra em conflito com a coação. Não pode habitar os espaços pois habitá-los só seria possível em liberdade, a qual o sujeito que marcha sem saber para onde já não consegue exercer.

Na pós-modernidade muitas características são distintas, mas uma beira ao irrefreável: a virtualidade. Esta se constitui de um completo vazio, um lugar que não é espaço, no qual as coisas não são e, ainda, suas possibilidades se dão apenas pela inexistência de vivências, de experiências. Drummond consegue antecipar a impossibilidade de percurso, o lugar no qual nada há, um não-lugar no qual nada ao corpo é possível. O quadro utilizado na derivação da imagem ilustrativa deste post, Isto não é um cachimbo, de René Magritti, traduz as coisas que não são do virtual. Afinal, o que se vê na ilustração que escolhi não é nem um cachimbo, nem o quadro do artista. José, neste contexto, serve como representação da ausência de vida ocasionada pela virtualidade como prótese dos corpos que não mais estão em mundo.

O poeta já não pode fumar o não-cachimbo reiterado.

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