Em Vou-me embora pra Pasárgada, um dos poemas mais famosos de Manuel Bandeira, o eu-lírico é tudo aquilo que, em vida, o poeta nunca fora. Exceto, talvez, poeta. Caso possamos considerar que o eu-lírico vá de encontro ao fazer narrativo em que é engendrado. Em muito podemos, e talvez devamos pela biografia do poeta, lastimar suas dores. Doente desde a tenra idade, e por isso impossibilitado de diversos fazeres que nos seriam um tanto comuns: banhos de mar, sexo não condicionado à concepção e à prostituição, andar de bicicleta… uma vida restritiva que, independente das restrições, não deixa de ocasionar o perverso e o degradante na criação desta Pasárgada.
Ao ser amigo do rei, o eu-lírico de Bandeira barganha privilégios monárquicos. Entre eles, o que se destaca com maior vigor, é a posse dos corpos femininos nas camas de sua escolha. As prostitutas bonitas com que este eu-lírico deseja namorar traz uma correspondência entre o eu-lírico e o poeta que, tuberculoso desde a adolescência, teve o contato sexual restrito àquelas que, carentes de recursos financeiros, arriscavam contrair a fatal doença. E talvez, aos olhos do poeta, não fossem as mais belas, não ao menos com as da Pasárgada de suas ambições. Lembrando que somente em 1946 fora desenvolvido um antibiótico para tratar a doença. Logo, o eu-lírico retratado aguardara uma morte eminente que, pela biografia do poeta, não ocorreu. Alguns olharão com ternura a associação entre namoro e as prostitutas mas, considerando que o risco de vida das mesmas era condicionado a um acordo financeiro inspirado na libido do poeta, ora eu-lírico, qual ternura teria lugar perante a fatalidade proposta? Bandeira não constituiu família por medo de contaminar aqueles que potencialmente amaria, portanto o namoro em questão funciona como um eufemismo para sexo, ou até mesmo estupro, considerando que a aceitação se dá por conta de um mundo que condicionara as mulheres a poucas chances de sobrevivência além do comércio dos próprios corpos.
Há também que se considerar a nomenclatura desta alternativa realidade. Uma cidade persa da antiguidade, um símbolo opositor à antiguidade clássica, ao helenismo, ao menos até o império de Alexandre da Macedônia. Em suma, simbolicamente um estandarte daquilo ao que o modernismo se opunha: a tradição ocidental. Entretanto, como de ingênuo o poeta nada tinha, uma oposição que leva a outra forma de tradição. Afinal, a questão monárquica justamente aponta alguma tradição, seja ela qual for. E Bandeira tinha um gosto pela cultura do Oriente Médio, algo constatável além do peso de Pasárgada em sua obra, como no poema Gazal com Louvor a Hafiz. Portanto, de tal lugar quase onírico, por ser demasiadamente premeditado para tanto, a busca não é aleatória, mas sim estética e política. É lamentável que, em seu ímpeto transformador, um excesso de moralismo reformado à pretensa subversão.
A ternura de Pasárgada é um embuste de suas ambições arcaicas.